Animação atualiza os dilemas morais do faroeste com narrativa delirante que não perde o humor
Mitos dos westerns clássicos são tratados com criatividade em Rango, de Gore Verbinski |
O diretor Gore Verbinski é fascinado por cinema. Seus filmes de maior sucesso são, na essência, releituras de estruturas consagradas em certos gêneros cinematográficos, como em O chamado (no qual reconstrói a versão japonesa das tradições do terror) ou na série Piratas do Caribe (em que renova o filme de aventuras capa e espada, que parecia exausto desde meados do século passado). Rango não foge a essa regra. Produz a nítida impressão de que o cineasta tenta demonstrar o erro da opinião geral, segundo a qual o western seria um filão quase completamente exaurido.
Rango é um camaleão que, da mala do carro de seu dono, é derrubado na estrada em pleno deserto no Oeste americano. Tentando sobreviver, chega a Poeira, uma cidade no meio do nada, habitada por outros animais. Só que Poeira é um anacronismo: seus hábitos e tecnologia se aproximam bastante daqueles que encontramos no século 19 durante a expansão dos Estados Unidos para o Oeste, de um machismo rústico ao uso de animais para transporte. Lá, quase sem querer, ele acaba se transformando em xerife, e precisa liderar a comunidade em seu momento de maior crise: uma escassez de água que pode levar a cidade a se tornar deserta.
Boa parte do charme de Rango vem do choque entre nosso mundo, que também é o do herói, e a realidade de Poeira. Rango tem valores dos Estados Unidos de hoje; Poeira vive praticamente numa era pré-industrial. Rango tem veleidades de ator, de modo que é capaz de interpretar a personagem que os habitantes da cidade esperam dele. Não faz diferença: o choque de valores insiste em se impor. Mas o anacronismo não está apenas no choque de valores: se Poeira vive no século 19, é do ponto de vista de sua lógica de cidade em que os conflitos são resolvidos a bala, a lei não é a mesma para todos, indivíduo e comunidade ainda não estabeleceram fronteira nítida entre seus direitos. No detalhe, a cidade é sui generis: aves e morcegos usados como montaria, uso de água como moeda ou adequação de objetos “modernos” a usos antigos transformam Rango num delírio visual e numa fonte permanente de piadas tanto para crianças quanto para adultos.
E o talento de Gore Verbinski para a paródia é fonte permanente para a piada. Ele toma estruturas visuais que se tornaram clichês do western e lhes dá novos sentidos. Importa peripécias típicas, como a cavalgada ou o tiroteio, e esvazia-as do sentido a que estamos acostumados. Constrói uma sequência de perseguição magnífica num desfiladeiro, com todos os elementos da lógica a que se propõe, com edição contemporânea e imagens que só se tornaram possíveis depois do advento da computação gráfica, numa das mais excitantes batalhas aéreas dos últimos anos.
No fim das contas, essa parafernália enche os olhos e excita, mas traz consigo a mensagem simples que mais marcou o antigo western: qualquer povo só se torna uma sociedade quando é capaz de se organizar, e essa sociedade só será moderna se a organização for numa ordem justa. Como os velhos heróis do western, Rango, um homem sem laços ou raízes, chega para trazer a lei a uma terra sem lei. A ideia valia há 150 anos, valeu na metade do século passado, e continua forte ainda hoje. Assim como sua aptidão a nos emocionar e divertir.
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